As primeiras palavras do papa Bento 16 ao receber o presidente Lula no dia 12, na sede do Vaticano, foram de agradecimento pela aceitação de um acordo que institucionaliza a atuação da Igreja católica no país. O texto originalmente proposto pelo Vaticano sofreu alterações nos dois anos de uma negociação sem debate com a sociedade e, pelo contrário, mantida em sigilo até que o documento fosse assinado. A solenidade de assinatura foi no próprio dia 12, em Roma, a portas fechadas. Outros países com os quais o Vaticano tem relações diplomáticas também formalizaram a atuação da Igreja em seu território, e o Brasil teria sido o último, entre os que têm população com maioria de católicos, a assinar esse tipo de acordo. Eram grandes as expectativas do Vaticano com relação a este desfecho.
Representantes do Itamaraty conversaram em Roma com a imprensa nacional que, ainda sem conhecer o teor do documento, indagou sobre possíveis privilégios concedidos à Igreja católica, e sobre eventual instituição do ensino religioso nas escolas, o que seria inconstitucional. Apressaram-se em apontar o caráter “administrativo” do documento –dizendo que visa apenas dar “formato jurídico a um intercâmbio que já existe”-, e garantiram que o texto não fere a Constituição brasileira. A embaixadora responsável pelas negociações com a Santa Sé, Maria Edileuza Fontenele Reis, disse que “o acordo não tem nenhuma malandragem, se tivesse era o meu pescoço que iria para a forca”, frase no mínimo inoportuna, para o momento em que o Governo se manifestava, pela primeira vez, a respeito de seu solene ato.
Pelo que se informou, o texto final do Acordo entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé Relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, não inclui alguns dos pontos pretendidos pelo Vaticano, como a oficialização de feriados católicos e o estabelecimento da educação moral e religiosa católica nas escolas. A embaixadora do Brasil no Vaticano, Vera Machado, disse que o Brasil recusou também uma cláusula que pretendia abrir a entrada de missionários/as em áreas indígenas brasileiras, em respeito a normas da Funai de 1987, relativas ao respeito às comunidades indígenas e sua cultura.
Problemas estão nas entrelinhas, o que torna o debate urgente
O acordo assinado pelo governo Lula precisa passar pelo Congresso Nacional para ser ratificado. Antes disso, é urgente um debate amplo sobre suas implicações, sob o risco de que o país recue em relação à determinação republicana do final do século 19, que separou os poderes Igreja-Estado. E sob o risco de que se elimine de vez a possibilidade de interromper privilégios que a hierarquia católica mantém até hoje, e que buscou consolidar através deste acordo que institucionaliza, por exemplo:
Isenções fiscais para rendas e patrimônios de pessoas jurídicas eclesiásticas (artigo 15) – Sobre este artigo o editorial de O Globo de 15 de novembro, intitulado Deus e Cesar, chama atenção para o risco de “mau uso da compreensível e defensável imunidade das receitas e ativos de qualquer igreja –não apenas a católica– por pessoas de má fé”. Mas é preciso indagar também se é compreensível e defensável que esta isenção se estenda a atividades puramente comerciais, que dão sustentação financeira ao estado do Vaticano e suas ramificações nos países. Parece absurdo, por exemplo, que propriedades que rendem aluguéis sejam isentas de IPTU e outros impostos.
Manutenção, com recursos públicos, do patrimônio cultural da igreja católica como prédios, acervos, documentos etc (artigo 15) – Pelo acordo, esses bens passam formalmente a pertencer também ao governo brasileiro, embora mantendo-se sob custódia e salvaguarda da Igreja. Tanto o governo quanto a Igreja têm a responsabilidade de preservar esses bens, mas é preciso analisar o risco de que a maior parte deste custo fique por conta do dinheiro público, sem contrapartidas.
Vínculo não-empregatício de padres, freiras, e todo o pessoal que faz trabalho voluntário para a igreja católica (artigo 16) – Este item exime formalmente o Vaticano de cumprir com as obrigação frente às leis trabalhistas brasileiras. Dada a gravidade do privilégio, seria no mínimo necessário clarear o entendimento sobre a extensão desta cláusula.
Sobre a prestação de serviços espirituais
O artigo 8º do acordo, garante à Igreja católica o direito de prestar serviços de “assistência espiritual aos fiéis internados em estabelecimentos de saúde, de assistência social, de educação ou similar, ou detidos em estabelecimento prisional ou similar, observadas as normas de cada estabelecimento, e que, por essa razão, estejam impedidos de exercer em condições normais a prática religiosa e a requeiram”.
A ressalva “observadas as normas de cada estabelecimento” e a especificação de que a pessoa precisa “requerer” a assistência religiosa, funcionam como freios para conter abusos. Porém, se pegarmos a questão do aborto, o que se vê na experiência de hoje é que o ‘plantão’ religioso em hospitais, de modo geral tolerado, tem funcionado como espaço para a pregação e pressão sobre as consciências. Observa-se incidência religiosa na postura de alguns profissionais das diferentes categorias que trabalham nessas unidades, e o exercício de proselitismo, principalmente na relação com da população desassistida que chega a essas instituições. Tenta-se convencer mulheres a não praticar o aborto legal, e são comuns episódios de convocação da Polícia, em denúncias contra aquelas que chegam às unidades com sequelas por aborto provocado na clandestinidade.
É difícil imaginar que, junto com a legitimação desta conceção, poderão existir regras para evitar esses abusos -que ferem a ética profissional, ferem direitos humanos e acordos internacionais-, sob a forma de imposição de normas católicas, e desrespeito às diversidades. Como será garantido o direito de recusa a este atendimento, sem insitências ou constrangimentos? como assegurar que agentes religiosos/as contenham ímpetos homofóbicos, lesbofóbicos, ou de pregar a família heterossexual monogâmica como ideal único?
Sobre o ensino religioso
O parágrafo 1º do artigo 11 diz que “o ensino religioso católico e de outras religiões, de matrícula facultativa, constitui disciplina do horário normal das escolas públicas de ensino fundamental, assegurando o respeito à diversidade cultural e religiosa do Brasil, em conformidade com as leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação”.
Embora o governo brasileiro tenha contido a pretenção da hierarquia católica, inserindo as ressalvas “e de outras religiões” e “em conformidade com as leis vigentes”, isto não é suficiente. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação, em vigor desde 1997, assegura o respeito à diversidade cultural e religiosa, e veda quaisquer formas de proselitismo. Como isto será garantido no “ensino religioso” proposto? De que forma será assegurada a liberdade de opção? Seria importante dialogar com o professorado do Rio de Janeiro, para conhecer as situações equivocadas que permeiam a experiência de um estado que aprovou lei de ensino religioso nas escolas. Uma professora nos disse:
“Nas escolas municipais do Rio foram interrompidas as aulas de educação sexual [em que se ensinava sobre DSTs, fecundação…] para dar lugar ao ensino religioso, por segmentos católicos e pentecostais que são contra a descriminalização do aborto e pregam a abstinência sexual antes do casamento. Esta lei foi sancionada pelo governo Rosinha Garotinho…”
Roseli Fischmann, professora da pós-graduação em Educação da USP, acha que o artigo 11 aumenta “as garantias da Igreja Católica de manutenção das aulas de religião”. Para ela, ao não se referir à liberdade de consciência, o acordo cria ambiente fecundo para uma cultura estigmatizante com relação às pessoas que não têm acesso –e/ou não querem ter- ao ensino religioso. Seria como pensar que este é o único caminho de uma educação para a integridade moral? Esta nos parece ser uma concepção hipócrita de uma integridade que é privilégio de quem tem formação religiosa, ainda mais colocando o catolicismo no topo de uma noção hierárquica entre as próprias matrizes religiosas.
O editorial de O Globo reconhece a necessidade de que o artigo 11 seja mais discutido e detalhado, antes de aprovado no Congresso Nacional tornando o ensino religioso um “fato consumado”. Mas o argumento apresentado pelo jornal reforça o estigma com relação a outras matrizes religiosas, ao admitir o risco de que o “facultativo” se converta em “compulsório”, com uma conclusão patética de que “também será desastroso se a intolerância de algumas correntes religiosas conseguir infiltrar-se nas escolas públicas”, como se não houvesse intolerância inclusive no catolicismo.
O advogado católico e militante anti-abortista Ives Gandra Martins teve um artigo publicado em três jornais no dia 14: Correio Braziliense, Estado de S.Paulo e O Globo. Ele afirma no texto que um dos pilares do acordo é a “garantia do direito fundamental à liberdade religiosa”, admitindo que “outras confissões poderão firmar acordos similares, fixando suas relações jurídicas” com o Estado brasileiro, mas “sem o status de acordo internacional, já que não se tratará de acordo entre sujeitos soberanos de direito internacional”. Essa ressalva torna cristalino o reconhecimento do lugar superior do Estado do Vaticano na balança de poder de influência entre igrejas, no mundo ocidental, sem questionar, ou mesmo justificar a legitimidade desse status.
Um último elemento que trazemos, para subsidiar este ponto da discussão, é o aspecto levantado no Observatório da Imprensa pelo jornalista Alberto Dines, apontando por que razão o segmento dos evangélicos, cujo crescente poder está mais na mídia eletrônica do que nas escolas, não protesta diante do acordo:
“…[nem] a poderosa mídia eletrônica evangélica protestará porque não está interessada no ensino religioso. O que ela deseja é continuar distribuindo aos seus deputados mais e mais concessões de radiodifusão”.
O jornalista discorre também sobre este tema em depoimento divulgado no Último Segundo. Ele denuncia a “perigosa disputa entre evangélicos e católicos, verdadeira ‘guerra santa’ pelo controle dos corações e mentes dos brasileiros no âmbito da mídia eletrônica”, interpretando que o governo brasileiro afronta os fundamentos constitucionais que separam Estado e igrejas, tanto ao assinar o acordo com a Santa Sé, quanto ao distribuir generosas concessões de radiodifusão para aliados evangélicos.
Em matéria publicada, também no Último Segundo, Roseli Fischmann chama atenção para os últimos artigos, em especial o de número 18, onde localiza um dos maiores riscos na frase “O presente acordo poderá ser complementado”. diz a reportagem:
“Ela explica que esse ponto deixa uma porta aberta para novos adendos e abre precedente para que a Igreja influencie em assuntos ainda mais polêmicos. ‘O governo assinou, deixando aberta essa possibilidade. Isso pode dar espaço para que a Igreja intervenha em questões como o aborto, casamento de pessoas do mesmo sexo, pesquisa com células troco embrionárias, entre outras.”
Lista à qual acrescentaríamos a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos, o uso de tecnologias anticonceptivas, e o uso da pílula do dia seguinte.
Fonte: Forum PLP´s Distrito Federal por Angela Freitas/ Instituto Patrícia Galvão
Participe da comunidade do meu Blog
sábado, 15 de agosto de 2009
Acordo Brasil-Vaticano e o risco das entrelinhas
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário