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sexta-feira, 17 de julho de 2009

O princípio antrópico e o debate entre ciência e religião

John Polkinghorne

O universo que nós observamos hoje se originou há cerca de 13.7 bilhões de anos atrás, de um estado singular de densidade e temperatura extrema que denominamos coloquialmente como o “Big Bang”. O universo, em sua infância, era estruturalmente muito simples, consistindo de uma bola quase uniforme de matéria/energia em expansão. Uma das razões porque os cosmologistas podem falar com um considerável grau de confiança sobre esta época inicial é que as coisas então eram simples, tornando fácil a construção de modelos nos dias de hoje. Depois de quase quatorze bilhões de anos de processo evolucionário, o universo se tornou muito complexo, sendo o cérebro humano (com seus 1011 neurônios e suas mais de 1014 conexões) o mais complicado sistema que a ciência já encontrou em sua exploração do mundo.

Os processos evolucionários envolvem a interação entre dois aspectos do mundo natural que, em forma de “slogan”, podemos rotular como “acaso e necessidade”. Apenas uma pequena proporção do que é teoricamente possível efetivamente aconteceu, e o “acaso” é responsável pelos detalhes contingentes dos eventos acontecidos. Na infância do universo, por exemplo, havia apenas flutuações sutis na distribuição da matéria. Estas heterogeneidades forneceram as sementes casuais das quais a estrutura granulada das galáxias e estrelas viria a crescer. Os detalhes efetivos desta estrutura cósmica foram causados pelo acaso, mas o processo envolveu também uma “necessidade” normatizada na forma da ação da gravidade. Um pouquinho mais de matéria em um ponto implicava uma atração gravitacional mais forte para este ponto, iniciando um processo de bola-de-neve pelo qual as galáxias se condensaram.


A ideia central do Princípio Antrópico (PA) é a de que o caráter específico da necessidade normatizada teve de assumir uma forma muito particular -- frequentemente expressa com a metáfora do “ajuste-fino” das leis da natureza -- para que o aparecimento dos “anthropoi”1 viesse a se tornar possível dentro dos limites da história cósmica. Em outras palavras, a mera exploração evolucionária do que pode acontecer (acaso) não teria sido suficiente se a regularidade normatizada do universo (necessidade) não houvesse assumido a forma altamente específica que é necessária para gerar potencialidade biológica. O universo tinha bilhões de anos de idade quando a vida apareceu, mas ele já estava prenhe desta possibilidade desde o princípio.

Vários “insights” científicos se combinam para conduzir a esta conclusão inesperada. Eles se relacionam a processos que aconteceram em diferentes estágios da história cósmica, começando por uma fração diminuta do primeiro segundo após o Big Bang, passando pela primeira geração de estrelas e galáxias, e atingindo os processos que se desdobram no cosmo atualmente. Será suficiente indicar alguns exemplos que ilustram o tipo de raciocínio envolvido na questão. Para tratamentos mais abrangentes e detalhados, pode-se recorrer a estudos mais minuciosos2.

A Especificidade Antrópica
Para possibilitar a vida baseada em carbono, as leis que operam no universo se sujeitam a algumas restrições.

1. Caráter Aberto
A ciência reconhece cada vez mais que a emergência de novidade genuína depende da existência de condições que poderiam ser descritas como “no limite do caos”, significando que, sob tais condições, regularidade e abertura, ordem e desordem, aparecem sutilmente entrelaçadas. Condições dominadas por uma ordem rígida são muito inflexíveis para permitir o aparecimento de algo realmente novo. Rearranjos de elementos já existentes são possíveis, mas não pode haver genuína novidade. Por outro lado, condições muito desorganizadas apresentam uma instabilidade cuja implicação é que nada novo pode persistir. A história conhecida da evolução biológica ilustra a discussão acima. Se não houvesse mutações genéticas, a vida jamais desenvolveria formas novas; se houvesse mutações em demasia, as espécies sobre as quais a seleção natural atua jamais teriam se estabelecido para tanto.

O caráter básico da lei física é o mecanismo quântico, cujas consequências incluem tanto a confiabilidade (p.ex. a estabilidade dos átomos) quanto a abertura (a imprevisibilidade de diversos efeitos). É plausível que tais características tenham sido necessárias para o surgimento da vida, que teria sido impossível em um universo governado pelo determinismo newtoniano.

2. Arranjo Global
A estabilidade das órbitas planetárias, uma necessidade óbvia para o desenvolvimento da vida em qualquer planeta, deriva do fato de a gravidade obedecer a uma lei que, matematicamente, é um inverso ao quadrado. Uma lei que fosse o inverso ao cubo, por exemplo, teria feito o sistema solar incapaz de se manter coerente por qualquer período significativo de tempo. O caráter de “inverso ao quadrado” da gravidade está ligado às dimensões do espaço. Se o espaço fosse quadridimensional, ao invés de tridimensional, a gravidade poderia realmente ter sido um inverso ao cubo.

3. Especificidade Quantitativa
Quatro forças fundamentais da natureza operam em nosso universo. A intensidade de cada uma é determinada pelos valores de quatro constantes naturais correspondentes. A sutil constante estrutural (“structure Constant”) (a) especifica a força do eletromagnetismo; a constante gravitacional de Newton (G) especifica a força da gravidade; e duas constantes especificam a intensidade das forças nucleares, gs para as forças fortes que mantém o núcleo atômico reunido e gw para as forças fracas, que são responsáveis por alguns decaimentos nucleares e também controlam as interações dos neutrinos. As magnitudes de todas essas constantes devem ser firmemente delimitadas caso se queira um universo capaz de produzir vida.

Se gw fosse um pouco menor, o universo primitivo teria convertido todo o seu hidrogênio em hélio antes mesmo de esfriar a um grau abaixo da temperatura na qual os processos cósmicos nucleares cessam. Tal significaria não apenas a total ausência de água, tão essencial à vida, mas também a existência exclusiva de estrelas de hélio, cuja duração seria insuficiente para sustentar o desenvolvimento da vida em qualquer de seus planetas. Se gw fosse um pouco maior, as explosões de supernovas teriam sido inibidas.

Este último fato poderia ter sérias consequências para os processos elaborados e delicadamente equilibrados pelos quais a matéria prima química da vida é feita. Sendo o universo primitivo tão simples, produziria apenas os dois elementos mais simples: hidrogênio e hélio. Ambos têm uma química muito maçante para proporcionar a base de qualquer coisa tão interessante como a vida. Esta requer mais de vinte outros elementos, o carbono acima de tudo, cujas propriedades químicas possibilitam a formação de longas moléculas em cadeia que fornecem a base bioquímica da vida. O único lugar no universo onde o carbono é feito é o interior das fornalhas nucleares das estrelas. Todos os seres vivos são feitos de poeira estelar. Desembaraçar a cadeia de interações nucleares pelas quais o carbono e os elementos pesados são produzidos foi um dos triunfos da astrofísica do século 20. Fred Hoyle foi um pioneiro neste trabalho. Ele notou que a produção estelar do carbono só era possível porque havia uma ressonância (um efeito de grande amplificação) ocorrendo em um nível de energia particular no carbono, sendo ao mesmo tempo ausente qualquer ressonância similar no oxigênio, o que impediu a perda do carbono, que em caso contrário teria em sua totalidade se tornado oxigênio. Essas propriedades nucleares detalhadas dependem do valor de gs, e se este valor tivesse sido diferente, o carbono poderia não ter existido, e não teríamos vida baseada em carbono. Ao se aperceber disto, Hoyle, embora ateu, teria dito que o universo era uma “coisa feita”. Ele não conseguiu aceitar que um ajuste-fino tão significativo fora meramente um acidente feliz.

Dentro de uma estrela não é possível produzir elementos químicos mais pesados que o ferro, a mais estável das espécies nucleares. Consequentemente, dois problemas permanecem: como produzir os elementos pesados, alguns dos quais são necessários à vida, e como fazer com que os elementos mais leves saiam de dentro da estrela que os produziu. A explosão de supernova resolve ambos os problemas, uma vez que as interações de neutrino que a acompanham também produzem elementos mais pesados que o ferro; mas apenas se gw assumir um valor apropriado.

As estrelas têm um segundo papel a desempenhar na viabilização da vida, pelo simples fato de proporcionarem fontes duradouras (bilhões de anos) e relativamente estáveis de energia para alimentar o processo. Isto requer uma razão entre eletromagnetismo e gravidade (a para G) situada dentro de limites estreitos -- de outro modo as estrelas queimariam tão furiosamente que viveriam apenas uns poucos milhões de anos, ou tão fracamente que seriam inúteis à vida.

Muitas outras restrições antrópicas poderiam ser mencionadas. Uma das mais precisas se relaciona à constante cosmológica (l), um parâmetro associado a um tipo de antigravidade, que causa uma repulsão na matéria. A possibilidade de um l diferente de zero foi reconhecida por Einstein, mas logo se viu que se tal força existisse, seria necessariamente algo muito suave, caso contrário o universo teria se dispersado muito rapidamente. Atualmente sabemos que o valor de l não pode diferir em mais do que 10-120 da intensidade naturalmente esperada. Isto representa um grau extraordinário de ajuste-fino necessário.

4. Condições Iniciais e Outras Condições
A história cósmica é um cabo-de-guerra entre as tendências opostas da contração gravitacional (no sentido de ajuntar a matéria) e a soma dos efeitos expansivos (tais como as velocidades iniciais após o Big Bang, juntamente com outros efeitos, como o valor não-zero de l). Estas duas tendências devem ser proximamente equilibradas para que o universo não colapse rapidamente em um “big crunch”, ou rapidamente se torne tão diluído a ponto de impossibilitar um processo frutífero. De fato ao realizar extrapolações de volta à era de Planck, quando o cosmos tinha apenas 10-43 segundos de idade, os cosmologistas concluem que a diferença entre as duas tendências poderia ser apenas de uma parte em 1060. Vamos retomar este ponto particular mais adiante.

Roger Penrose enfatiza que o universo parece ter começado com um nível de organização extremamente alto (baixa entropia). Acredita-se que isso esteja intimamente relacionado às propriedades termodinâmicas do universo, e até mesmo, possivelmente, à natureza do tempo. Penrose estima a probabilidade de isso acontecer por acaso de uma em 10123.

Outra necessidade antrópica é o tamanho do universo observável, com suas 1011 galáxias, cada uma com uma média de 1011 estrelas. Conquanto tal imensidão possa às vezes parecer intimidante aos habitantes do que, efetivamente, não passa de um grão de poeira cósmica, não deveríamos nos sentir mal, porque apenas um universo ao menos tão grande como o nosso poderia ter durado os quatorze bilhões de anos necessários para que seres humanos entrassem em cena. Qualquer coisa significantemente menor teria uma história breve demais para tanto.

5. Considerações Biológicas
A complexidade da biologia, em comparação com a física, torna muito mais difícil derivar restrições antrópicas diretamente de detalhes dos processos biológicos. Está claro, no entanto, que a vida depende em muitos aspectos de detalhes das propriedades da matéria neste universo3. Um simples exemplo é a anômala propriedade da água de expandir-se quando congelada, desse modo impedindo que os lagos se congelem até o fundo, o que mataria quaisquer formas de vida em seu interior. Mudanças no valor de a poderiam alterar essas propriedades.

Esta seção esboçou algumas das considerações a partir das quais se torna claro que um universo antrópico é realmente um universo muito particular. É também digno de nota que, muito embora as constantes da natureza sejam restringidas por múltiplas condições, há um conjunto de valores que satisfaz a todas consistentemente, um fato em si mesmo extraordinário, no tocante à constituição do mundo.

Interpretação
Todos os cientistas concordam em que a fábrica física do universo precisou assumir uma forma muito particular para que a vida baseada em carbono fosse capaz de evoluir ao longo de sua história. O desacordo começa quando se discute qual seria a significância desse fato tão notável.

Para muitos cientistas, o ajuste-fino cósmico veio como um choque indesejado. Profissionalmente, os cientistas aspiram à generalidade, e por isso muitos se tornam excessivamente desconfiados quanto ao particular. A sua inclinação natural é acreditar que nosso universo seja simplesmente um espécime perfeitamente típico do que um cosmo deveria ser. O Princípio Antrópico mostrou que não é assim, que nosso universo é antes muito especial; um em um trilhão, por assim dizer. Reconhecer isso pareceu uma espécie de revolução anti-copernicana. Obviamente, os seres humanos não vivem no centro do cosmo, mas a estrutura física intrínseca deste mundo teve de ser restringida dentro de estreitos limites para que a evolução da vida baseada em carbono fosse viável. Alguns também temeram ter detectado uma indesejável ameaça de teísmo. Se o universo foi dotado com potencialidades finamente ajustadas, isto poderia indicar que há um divino “ajustador”.

Uma forma bastante nova de argumento do design voltava à agenda. A ideia darwiniana retirara a força do velho argumento do “design” para a existência de Deus, perseguido no passado por pessoas como John Ray e William Paley. Eles apelavam para a aptidão funcional dos seres vivos, mas o pensamento evolucionário mostrou como a paciente acumulação e peneiração de pequenas diferenças poderia levar ao aparecimento de “design” sem implicar a intervenção direta de um Designer divino. Teólogos vieram a reconhecer que o tipo antigo de teologia natural cometera o erro de pôr-se como uma rival da ciência dentro dos legítimos domínios dessa última, tentando lidar com questões tais como a da origem do sistema ótico do olho dos mamíferos, cuja resposta se encontra no âmbito da competência biológica. Esta crítica não poderia ser feita ao novo argumento, que apela para a potencialidade antrópica. A nova teologia natural buscou ser complementária em relação à ciência, ao invés de competir com ela. A sua preocupação foi com as próprias leis da natureza, algo que uma ciência honesta não pode explicar porque precisa assumir como a própria base carente de explicações de seu relato detalhado dos acontecimentos. David Hume insistiu em favor da aceitação das propriedades da matéria como um fato bruto, mas o ajuste-fino da natureza torna intelectualmente insatisfatório parar nesse ponto a busca pela compreensão. Hume criticou o velho argumento do “design” como sendo demasiadamente antropomórfico, como se a obra do Criador pudesse apropriadamente ser comparada à de carpinteiros construindo um navio. Essa crítica não se aplica aos argumentos antrópicos, desde que a dotação da matéria com potencialidades intrínsecas não tem análogo humano. Em termos das palavras hebraicas empregadas no Antigo Testamento, o ajuste-fino corresponde a “bara” (uma palavra reservada para a atividade divina), ao invés de “asah” (“criação”, usada tanto para Deus quanto para os humanos).

O primeiro passo no debate sobre a interpretação foi a distinção entre as várias formulações do Princípio Antrópico. A mais modesta delas foi o Princípio Antrópico Suave (PAS), o qual simplesmente afirmava a ideia de que o caráter do universo que observamos deve ser consistente com a nossa presença em seu interior como seus observadores. À primeira vista, pode não parecer uma afirmação muito interessante. É claro, por exemplo, que não há nada surpreendente em vermos um universo com cerca de quatorze bilhões de anos, desde que seres com o nosso grau de complexidade não tenham emergido à cena em uma época anterior. Entretanto, como vimos na seção prévia, as investigações científicas têm mostrado que condições plenamente antrópicas estão muito longe da trivialidade, pois incluem restrições tais como o estabelecimento de limites estreitos para os valores das constantes da natureza que definem próprio o tecido físico do mundo.

Algumas pessoas foram então levadas a definir um Princípio Antrópico Forte (PAF), alegando que o universo teve necessariamente que ter tais propriedades para permitir que a vida se desenvolvesse nele em algum momento. O problema com a proposta é o que poderia ser a fonte da afirmada necessidade. O PAF é uma declaração fortemente teleológica. O crente religioso ficará feliz em fundar essa necessidade na vontade do Criador, mas o “status” do PAF como uma reivindicação puramente secular é misterioso. Certamente não parece se fundar na própria ciência.

Duas outras formas de Princípio Antrópico são algumas vezes discutidas. O Princípio Antrópico Participativo (PAP) afirma que observadores são necessários para trazer o universo à existência. Certo apelo é feito aqui a uma polêmica interpretação da teoria quântica que fala em termos de uma “realidade criada pelo observador”4, mas é difícil crer que o universo não “existiu” até que os observadores tenham aparecido. Há também o Princípio Antrópico Final (PAFi), segundo o qual uma vez que o processamento inteligente de informação tenha se iniciado no universo, ele deve continuar para sempre. De novo, é difícil encontrar uma fonte secular para a alegada necessidade. PAP e PAFi parecem ainda menos satisfatórios do que PAS.

Outra linha de ataque ao raciocínio antrópico tentou atenuar a reivindicação de particularidade cósmica apontando que, na verdade, nós temos apenas um universo para estudar; mas como tirar conclusões significativas de uma amostra única? Bem, com exercícios de imaginação científica poderíamos visitar outros universos possíveis que seriam razoavelmente similares ao nosso. A consideração, na seção anterior, de mundos cujas constantes da natureza assumiriam valores diferentes daqueles do presente universo seria um exemplo. Nessa coleção nocional de mundos vizinhos, descobrimos que apenas um conjunto muito estreito poderia compartilhar da potencialidade antrópica com o nosso mundo efetivo. Com certeza isso seria suficiente para estabelecer um grau de especificidade que clama por um tipo de compreensão meta-científica da particularidade antrópica.

Outra abordagem sugeriu que de fato só poderia haver um mundo possível; um universo no qual, por necessidade, a intensidade das forças assume os valores que efetivamente observamos. Os defensores dessa visão apelaram à dificuldade encontrada pelos físicos para combinar com sucesso a relatividade geral e a teoria quântica, e sugeriram que talvez houvesse uma singular Grande Teoria Unificada (GTU) que alcançaria esse objetivo e determinaria os valores de todas as constantes da natureza. Mesmo se tal fosse possível -- e a muitos parece improvável que uma GTU venha a ser totalmente livre de parâmetros de escala -- ainda seria necessário explicar por que a relatividade e a teoria quântica deveriam ser tratadas como fatos dados. Elas certamente parecem ser necessidades antrópicas, mas de modo algum são logicamente inevitáveis. Entretanto, se realmente houver uma GTU singular, a maior de todas as coincidências antrópicas seguramente seria que essa teoria, determinada na base da consistência lógica, também se provasse a base para um mundo capaz de fazer evoluir seres aptos para compreender essa consistência.

Uma proposta mais modesta e realista sugere que algumas coincidências antrópicas sejam vistas como consequências de uma teoria mais profunda, de tal modo que o ajuste-fino se torne desnecessário. Um possível exemplo disso é o caso do delicado equilíbrio entre efeitos expansivos e contrativos no próprio universo primitivo que discutimos anteriormente. Conforme se aceita hoje, quando o universo alcançou cerca de 10-35 segundos de idade, ocorreu uma transição de fase cósmica (uma espécie de fervura do espaço) que, por um curto período, expandiu o cosmo com incrível rapidez. Este processo, denominado “inflação”, poderia ter uniformizado o universo e criado o balanceado equilíbrio entre as tendências expansivas e contrativas que observamos agora. Mas a própria inflação requereria, para atuar satisfatoriamente, que o GTU operante no universo tivesse uma forma restrita, de modo que a particularidade antrópica não fosse perdida, mas empurrada mais profundamente no tecido do mundo.

Ao invés disso poderíamos buscar um tipo de Princípio Antrópico Moderado5, que dê atenção ao caráter especial do universo e reconheça que tal não poderia ser tratado como um feliz acidente, mas como algo que clama por explicação.

Duas abordagens metacientíficas contrastantes têm sido procuradas. John Leslie, que gosta de fazer filosofia de um jeito parabólico, contou uma história que ilustra graficamente o assunto.6 Você está a ponto de ser executado e os rifles de atiradores de elite estão apontados para o seu peito. Um oficial dá a ordem para abrir fogo... E você descobre que sobreviveu! Você simplesmente sai andando e dizendo “puxa, essa foi por pouco!”? Certamente que não, porque um evento tão impressionante como esse sem dúvida exigirá uma explicação. Leslie sugere que a explicação pode tomar uma dentre duas formas. Um vasto número de execuções foi feito naquele dia e, desde que atiradores ocasionalmente erram, por puro acaso você foi sortudo o bastante para estar na execução em que todos erraram. Ou, algo mais além de sua consciência estava acontecendo naquele evento único da sua execução -- os atiradores estavam do seu lado e erraram, todos de propósito. Essa encantadora historieta traduz-se nas duas abordagens que tratam com a apropriada seriedade as questões antrópicas.

1. Multiverso
Sugeriu-se que talvez existam muitos universos diferentes, cada um dos quais com leis naturais de tipos muito diferentes. Nesse vasto portfólio de mundos, haveria por puro acaso um capaz de desenvolver a vida baseada em carbono -- o nosso, é claro, desde que somos vida baseada em carbono. Um cosmo antrópico seria simplesmente um raro bilhete premiado em uma loteria multiversal.

A versão mais econômica da ideia supõe que esses diferentes mundos seriam na verdade vastos domínios dentro de um único universo físico. A forma como a simetria da GUT primordial foi quebrada na medida em que a expansão esfriou o universo, produzindo com isso as forças que hoje operam efetivamente, não precisa ser literalmente universal. Ao invés disso o cosmo poderia ser um mosaico de diferentes domínios, sendo que em cada um a quebra de simetria teria assumido uma forma diferente. Nós não temos consciência disso porque a inflação removeu todos os outros domínios da nossa vista e, é claro, o nosso domínio é necessariamente aquele no qual os resultados da quebra de simetria se encontraram com a necessidade antrópica. A ideia é plausível, mas apenas modifica em certo grau o requerimento de especificidade, pois continua sendo necessário que a GTU primitiva tenha assumido uma forma tal que, quando a sua simetria fosse quebrada, as forças produzidas por ela teriam as intensidades apropriadas.

Qualquer sugestão mais radical do que esta nos levará a um mundo de especulação que está além do escopo do pensamento físico sóbrio. Apelos questionáveis precisarão ser feitos a definições correntemente mal definidas de cosmologia quântica, ao mesmo tempo recorrendo-se a suposições “ad hoc” sobre diferenças radicais entre o caráter das leis dos mundos supostamente gerados desse modo. O multiverso, nessa forma, não é mais do que um palpite metafísico de excessiva prodigalidade ontológica -- o recurso a ele parece ser motivado, em parte, no desejo e evitar o teísmo associado à segunda abordagem.

2. Criação
O teísta pode acreditar que há apenas um universo, cujo caráter antrópico simplesmente reflita a doação de potencialidade feita por seu Criador a fim de que ele tenha uma história frutífera. Tal é também um palpite metafísico mas, em contraste com o multiverso, ele acrescenta várias explicações de outras questões além de lidar com os temas antrópicos. A maravilhosa e inteligível ordem do mundo, por exemplo, tão intrigante para o cientista, pode ser compreendida como um reflexo da mente do seu Criador. O difundido testemunho humano da experiência do encontro com a realidade do sagrado pode ser compreendido com emergindo da percepção efetiva da presença velada de Deus. Não reivindicamos que a especificidade antrópica do nosso mundo, compreendida dessa forma, proveja um argumento logicamente coercivo para a crença em Deus, ao ponto de apenas um tolo querer negá-la; mas antes que ela traz uma contribuição iluminadora ao argumento cumulativo em favor do teísmo, considerado assim a melhor explicação para a natureza do mundo em que habitamos.


Notas
1. Termo grego para “seres humanos” -- sem significar literalmente, aqui, a humanidade com suas particularidades, mas com o sentido geral de complexidade própria da vida baseada em carbono.
2. Barrow, J.D. e Tipler, F.J. “The anthropic cosmological principle”. Oxford University Press, 1986; Leslie J. “Universes”. Londres: Routledge, 1989; Holder, R.D. “God, the multiverse, and everything”. Aldershot: Ashgate, 2004.
3. Ver Denton, M.J. “Nature’s Destiny”. New York: The Free Press, 1998.
4. Para uma crítica, ver Polkinghorne, J.C. “Quantum theory; a very short introduction”. Oxford University Press, 2002. p. 90-92.
5. Polkinghorne, J.C. “Reason and reality”. SPCK, 1991. p. 77-80.
6. Leslie, J. op. cit. [2], p. 13-14.


• Dr. John Polkinghorne trabalhou com física teórica de partículas elementares por 25 anos; foi professor de física matemática na Universidade de Cambridge e presidente do “Queens’ College”, em Cambridge. É membro da “Royal Society”, foi o presidente fundador da “International Society for Science and Religion” (2002-2004) e é autor de vários livros sobre ciência e religião.


* Esse artigo é parte da série “Faraday Papers”, publicada pelo Instituto Faraday para Ciência e Religião, uma organização sem fins lucrativos para educação e pesquisa localizada em Cambridge, Reino Unido. Uma lista desses artigos está disponível em www.faraday-institute.org. Traduzido por Guilherme de Carvalho.

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