"A história da interpretação da criação do homem à imagem de Deus não distingue o falso do verdadeiro, mas o 'verdadeiro' de hoje do 'mais verdadeiro' de amanhã e do 'igualmente verdadeiro' que os envolve. Ela fala de como os mundos religiosos – os monoteístas especialmente – foram obrigados a pensar a alteridade."
A opinião é do teólogo italiano Alberto Melloni, em artigo publicado no jornal Corriere della Sera, 21-09-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A linguagem dos direitos é aquela à qual, há mais de dois séculos, foi confiada a tarefa de tornar a vida vivível. Mas, como bem explicou Marcello Flores na sua "Storia dei diritti umani" [História dos direitos humanos] (Editora Il Mulino, 376 páginas), justamente os direitos – inclusive aqueles mais supremos – caminharam por aproximações tentativas, nas quais todas as culturas, todas as ideologias, todas as fés experimentaram fracassos e atrasos. Isso é tão verdade que mais de uma pessoa hoje considera sábio gozar desses direitos na prática, quando existem. Ou pedir o seu respeito, onde faltam. Sem se interrogar muito sobre os seus fundamentos, que são menos relevantes do que seus êxitos.
Porém, mesmo que se olhe os direitos com o mais pragmático desencanto, a discussão se reacende quando se deve dizer quem é seu titular. Há quem reproponha a famosa tese de Simone Weil, segundo a qual "o que é sagrado, bem longe de ser a pessoa, é aquilo que, em um ser humano, é impessoal". E há quem recorde que o personalismo foi o instrumento com o qual uma grande cultura, justamente não inclinada a reconhecer os direitos do homem como fator de progresso civil e moral como a católica, aprendeu a confiar na democracia, a lutar por ela.
Quem quiser saborear essa diferença poderá reler Roberto Esposito no recente livro da fundação Italianieuropei, "Religione e democrazia" (Ed. Solaris, 200 páginas), editado por Massimo Adinolfi e Alfredo D’Attorre, ou escutar na Radio Radicale como Valerio Onida apresentou o livro de Lucia Castellano e Donatella Stasio, "Diritti e castighi. Storie di umanità cancellata in carcere" (Ed. Il Saggiatore, 292 páginas).
Na realidade, tanto a linguagem do humano como a da pessoa não são outra coisa que interpretações de uma convicção das Escrituras judaicas e cristãs e (por meio de um hadith do Profeta) da tradição islâmica: a que se expressa pela afirmação sobre o homem criado à imagem e semelhança de Deus. Essa passagem já é objeto de um trabalho hermenèutico dentro do próprio livro do Gênesis: como imagem, o homem, de fato, exerce o poder do representado, mas a complementaridade entre os sexos ("homem e mulher os criou") redimensiona essa imagem.
O Novo Testamento a relê no Cristo, ele sim imagem do Deus invisível, abrindo o caminho para uma interpretação infinita. Interpretação que, do homem criado "Ad imaginem Dei" (um recente encontro com esse título ocorrido em Rossena por iniciativa de Pier Cesare Bori mostrou isso), faz surgir consequências totalmente diversas. Afirmando aquela, de fato, pode-se dar força a todo integralismo religioso que pretende poder impôr ao homem as obrigações consequentes a essa sua dignidade ou condição.
Pelo contrário, pode-se fazer derivar dessa tese a mais intrasigente defesa da inviolabilidade da consciência, da vida, do corpo. Pode ser a base de um machismo extremo ou, como ensinou Karen Börresen, o detonador de uma reivindição de gênero irresistível.
Ela foi estudada na escola de Salamanca do século XVI como critério para colocar em discussão a própria política de colonização das Américas, ou seja, para legitimar a escravidão de quem é considerado sub-humano. E para chegar à diferença notada no início, ela fundamenta a convicção de que o que é criado é a "pessoa" (categoria que pode ser atacada, contanto que se saiba que, sem essa unidade, a fé cristão perderia sua cristologia) e junto a crítica a um personalismo feito de direito romano mais do que sabedoria bíblica.
A história da interpretação da criação do homem à imagem de Deus, portanto, não distingue o falso do verdadeiro, mas o "verdadeiro" de hoje do "mais verdadeiro" de amanhã e do "igualmente verdadeiro" que os envolve. Ela fala de como os mundos religiosos – os monoteístas especialmente – foram obrigados a pensar a alteridade. De como encontraram o caminho das próprias grandes reformas interiores: isto é, procurando em um grande depósito hermenêutico, no qual toda reorganização teria efeitos devastadores. Um grande atelier de artista não precisa ser reordenado em busca de uma coerência uniforme, mas ser escutado para sentir as potencialidades de universos espirituais. Na espera de que o tempo e a história ajudem a encontrar nesse tesouro as coisas antigas e as coisas (aparentemente) novas que possam dar respiro à necessidade de conviver humanamente, quando essa necessidade, depois das catástrofes, se manifesta. Ou, ao esperá-los, defende-se do pensamento da sua iminência.
A opinião é do teólogo italiano Alberto Melloni, em artigo publicado no jornal Corriere della Sera, 21-09-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A linguagem dos direitos é aquela à qual, há mais de dois séculos, foi confiada a tarefa de tornar a vida vivível. Mas, como bem explicou Marcello Flores na sua "Storia dei diritti umani" [História dos direitos humanos] (Editora Il Mulino, 376 páginas), justamente os direitos – inclusive aqueles mais supremos – caminharam por aproximações tentativas, nas quais todas as culturas, todas as ideologias, todas as fés experimentaram fracassos e atrasos. Isso é tão verdade que mais de uma pessoa hoje considera sábio gozar desses direitos na prática, quando existem. Ou pedir o seu respeito, onde faltam. Sem se interrogar muito sobre os seus fundamentos, que são menos relevantes do que seus êxitos.
Porém, mesmo que se olhe os direitos com o mais pragmático desencanto, a discussão se reacende quando se deve dizer quem é seu titular. Há quem reproponha a famosa tese de Simone Weil, segundo a qual "o que é sagrado, bem longe de ser a pessoa, é aquilo que, em um ser humano, é impessoal". E há quem recorde que o personalismo foi o instrumento com o qual uma grande cultura, justamente não inclinada a reconhecer os direitos do homem como fator de progresso civil e moral como a católica, aprendeu a confiar na democracia, a lutar por ela.
Quem quiser saborear essa diferença poderá reler Roberto Esposito no recente livro da fundação Italianieuropei, "Religione e democrazia" (Ed. Solaris, 200 páginas), editado por Massimo Adinolfi e Alfredo D’Attorre, ou escutar na Radio Radicale como Valerio Onida apresentou o livro de Lucia Castellano e Donatella Stasio, "Diritti e castighi. Storie di umanità cancellata in carcere" (Ed. Il Saggiatore, 292 páginas).
Na realidade, tanto a linguagem do humano como a da pessoa não são outra coisa que interpretações de uma convicção das Escrituras judaicas e cristãs e (por meio de um hadith do Profeta) da tradição islâmica: a que se expressa pela afirmação sobre o homem criado à imagem e semelhança de Deus. Essa passagem já é objeto de um trabalho hermenèutico dentro do próprio livro do Gênesis: como imagem, o homem, de fato, exerce o poder do representado, mas a complementaridade entre os sexos ("homem e mulher os criou") redimensiona essa imagem.
O Novo Testamento a relê no Cristo, ele sim imagem do Deus invisível, abrindo o caminho para uma interpretação infinita. Interpretação que, do homem criado "Ad imaginem Dei" (um recente encontro com esse título ocorrido em Rossena por iniciativa de Pier Cesare Bori mostrou isso), faz surgir consequências totalmente diversas. Afirmando aquela, de fato, pode-se dar força a todo integralismo religioso que pretende poder impôr ao homem as obrigações consequentes a essa sua dignidade ou condição.
Pelo contrário, pode-se fazer derivar dessa tese a mais intrasigente defesa da inviolabilidade da consciência, da vida, do corpo. Pode ser a base de um machismo extremo ou, como ensinou Karen Börresen, o detonador de uma reivindição de gênero irresistível.
Ela foi estudada na escola de Salamanca do século XVI como critério para colocar em discussão a própria política de colonização das Américas, ou seja, para legitimar a escravidão de quem é considerado sub-humano. E para chegar à diferença notada no início, ela fundamenta a convicção de que o que é criado é a "pessoa" (categoria que pode ser atacada, contanto que se saiba que, sem essa unidade, a fé cristão perderia sua cristologia) e junto a crítica a um personalismo feito de direito romano mais do que sabedoria bíblica.
A história da interpretação da criação do homem à imagem de Deus, portanto, não distingue o falso do verdadeiro, mas o "verdadeiro" de hoje do "mais verdadeiro" de amanhã e do "igualmente verdadeiro" que os envolve. Ela fala de como os mundos religiosos – os monoteístas especialmente – foram obrigados a pensar a alteridade. De como encontraram o caminho das próprias grandes reformas interiores: isto é, procurando em um grande depósito hermenêutico, no qual toda reorganização teria efeitos devastadores. Um grande atelier de artista não precisa ser reordenado em busca de uma coerência uniforme, mas ser escutado para sentir as potencialidades de universos espirituais. Na espera de que o tempo e a história ajudem a encontrar nesse tesouro as coisas antigas e as coisas (aparentemente) novas que possam dar respiro à necessidade de conviver humanamente, quando essa necessidade, depois das catástrofes, se manifesta. Ou, ao esperá-los, defende-se do pensamento da sua iminência.
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